
Capitolina Revista
Rita Taborda Duarte
De Roturas e Ligamentos., Abysmo, 2015

8. Fechado para balanço
Culpo-te por não te amar em quase nada
e cuspo-te cada letra da culpa que é a tua.
É um xadrez que jogamos sempre juntos
rei branco em casa preta, adversários velhos
a mastigar estratégias de serão.
Culpo-me de te amar no final em quase tudo
e tu culpas-te por me culpar por me não amares.
Trazemos, então, o livro dos registos
e fazemos contabilidade, noite dentro.
Não sei como serão outros amores
mas o nosso é um longo livro nocturno dividido
em deves em haveres por um leve traço
a sépia desbotado.
Rasuramos e apagamos e voltamos a somar,
passamos cheques, recolhemos dividendos:
numa matemática cega, sem mais valias;
que nunca vão certas as contas deste amor.
Fazemos batota com as pedras do xadrez:
escondemos peões nas mangas largas,
uma rainha a mais entre as fraldas da camisa…
sussurramos bluffs embriagados sob a mesa,
duas torres arrasam uma diagonal inteira
e os cavalos sem freio a arquejar no tabuleiro;
o nosso jogo-de-xadrez é um exército desleal de armas de arremesso.
Ao final da noite somos dois reis sozinhos
preto e banco
a remoer o xeque das contas repetidas
conferimos, então, os números que nunca batem certo
e fechamo-nos com um aviso à porta, gasto e rasurado:
fechado para balanço do amor.

3. Sobram-me as mãos do corpo
Sobram-me as mãos do corpo,
e sem onde as pousar invejo os bolsos dos homens.
Vim de vestido, hoje, e como as mãos não me cabem no vestido
baloiçam nuas, patéticas, junto ao corpo,
quase o rasam rentes, mas eu vim de vestido hoje e
o meu vestido não tem os bolsos dos homens;
deixa-me as mãos de fora a exibir a vergonha de uma nudez
fora de corpo.
O meu corpo avança, em sintonia, corpo coral, musical:
ancas com as pernas e o pescoço e a cabeça os lábios
e só as mãos sem rima me desafinam a sinfonia dos passos.
As minhas mãos, as duas,
uma e outra, uma contra a outra, até
são o soldado perdido na parada o soldado embaraçado
a tropeçar nos tempos sem compasso
tão fora do corpo as minhas mãos
hesitam atrasos adiantam…
E nem um cigarro eu trouxe que me desembarace destas mãos despidas,
só vim com este vestido, sem os bolsos dos homens.
Por fim, arrisco o desespero do gesto
e já me dançam as mãos em rima
abandonando o corpo desatento, lá para trás.
É que dar um gesto às mãos é conceder-lhes o corpo que é o seu
e é tão mais fácil ser-se nu em nosso corpo…
Tu, então, com as tuas mãos guardadas nos teus bolsos de homem
nem me olhaste as ancas nem os lábios o pescoço ou as pernas musicais
e só me desejaste as mãos
simplesmente nuas, a sobrar do meu vestido.
4. A Palavra no Poema
Espeto a palavra no poema como se fosse uma borboleta
morta
e eu nem sequer gosto de metáforas nos poemas:
exibidas em espirais,
fingindo dizer aquilo que não dizem… mas a verdade
é que as palavras da poesia não passam de borboletas
esmagadas
na página do coleccionador:
não podem voar

5. Os frutos frios por fora
LNJ
São muito como os frutos, as palavras: frias por fora.
E é natural que assim o sejam, empasteladas na língua
antes de serem ditas.
Antes de dizer que te amo, por exemplo,
e este é só um exemplo, nota bem, que te quero dar
foram umas quantas de vezes que mastiguei
a palavra amor com os fiapos da carne do jantar.
Digo-ta e resta-me um amargo de boca e tu
recebe-la, à palavra, como a dádiva de um hálito mau,
contrariado por saber que a terás de devolver um dia,
um pouco mais apodrecida…
mesmo antes de lavares os dentes
e te ires deitar.
Cada palavra, vamos dizê-lo, é uma porcaria imensa:
Uma mistura líquida de cuspo e restos de comida.
Não é possível fazer poesia com restos de palavras mastigadas
que azedam num instante, ainda para mais se está calor.
Do amor pudéssemos só fazê-lo, dizendo quase nada
e isto não é sequer uma proposta, só um exemplo,
nota bem, que te estou a dar.
Enterrar de uma vez a sombra ferida das palavras
e cuspir-lhes em cima,
na lousa rasa empobrecida do poema.
A AUTORA

Rita Taborda Duarte (Lisboa, 1973): poeta, crítica literária, professora do ensino superior e escritora de mais de uma dezena de livros para infância. Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e escreve regularmente sobre poesia e ensaio, nas mais diversas publicações. Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia (Poética Breve, Black Sun Editores), a que se seguiram outros dois: Na estranha Casa de um Outro e Dos Sentidos das Coisas, escritos com uma bolsa de criação literária atribuída pelo IPLB. Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) em parceria com André da Loba (ilustrações). As Orelhas de Karenin (Abysmo, 2019), com desenhos de Pedro Proença é o seu mais recente livro de poesia. Certa vez, num encontro numa biblioteca escolar, um menino chamou-a «Escritora Infantil». Desde esse dia, assumiu o epíteto, brincando obsessivamente com palavras.