Capitolina Revista
Priscila Pasko

CORSÁRIOS
O apito acorda os moradores desta parte da cidade. É madrugada ainda. O som, ecoando com regularidade pendular: quando prestes a ser esquecido, logo é puxado à superfície, como um gemido que escapa sem querer. As persianas começam a se erguer e os olhares, confusos ou indignados, a se cruzarem em todas as direções em busca de respostas. O que de início parece ser um formigamento pelo meu corpo se revela com maior intensidade na rua. Mais adiante, uma seta amadeirada surge, rasgando o asfalto. A fiação rompida dos postes empresta um ar festivo, como se fogos de artifício explodissem no ar. A envergadura inclinada à frente projetando a sua própria sombra, um prenúncio de si mesma. Aos poucos, na confusão das formas e proporções, a lógica é borrada por evidências pouco confiáveis. Com esforço, no entanto, o enigma começa a se despir. Aproxima-se o casco pontiagudo de certa madeira rugosa. Algo nesta imagem remete a um velho sobrado cambaleante. O gemido da madeira a cada movimento. À sua frente, rebocando o navio, uma criança. O cabo desce do alto da embarcação mastigando um dos ombros da menina, que puxa o navio. O corpo oblíquo. Embora a sua expressão revele certo esforço, ela não deixa claro se a tarefa é tão exigente quanto parece. Outras crianças estão no convés, indiferentes à paisagem que as cerca. Brincam com sapatos sem par, algumas delas vestem fardas que escondem por completo seus corpos. Chama a atenção um grupo de crianças que parece esconder algum objeto do menino que usa o quepe. O acessório cobre os seus olhos e parte do nariz. Não é possível escutar o que fala, mas percebe-se que está bravo e lhe faltam dois dentes de leite na parte da frente. Ele procura energicamente por algo, quase chora. Seja o que for, após alguns minutos, acaba de encontrar na boca (de um homem?) jogado ao chão, próximo ao leme. O grupo lamenta a perspicácia do menino e se contorce em risadas agudas. Aquele é um dos diversos cadáveres espalhados pelo navio. De cima dos mastros também estão pendurados corpos putrefatos de orifícios abertos. Passam em frente aos prédios, às janelas mais altas, inclusive à minha, para desejarem bom dia. O odor invadindo os apartamentos, disputando narinas incrédulas. Não é possível saber com exatidão quantas crianças tomam o navio. Elas desaparecem e voltam a surgir em outro ponto, me deixando em dúvida se são as mesmas ou chegaram outras. Continuam a brincar. Agora cantam. “A canoa virou, pois deixaram ela virar, foi por causa do coronel que não soube remar”, e jogam, em um esforço conjunto, um corpo no asfalto. E assim dão seguimento à brincadeira com o despejo de cadáveres. A menina que puxa a embarcação interrompe o seu trabalho e logo os tripulantes reclamam. Não consigo compreender o que dizem. Junções de sílabas sem sentido. Gritam, ela do chão, e os demais na embarcação. Logo um missal é jogado no asfalto, corpos, munições, membros estilhaçados, garrafas, corpos, corpos, mais corpos. Celebram, as crianças, entre elas. O cenário ao seu redor, os prédios, parecem não existir. A pequena comandante em terra sorri aliviada e segue arrastando o navio. Uma sutura no meio da cidade. O apito do navio e a algazarra da tribulação ao longe. Lentamente, a vizinhança se descola do que acaba de presenciar assim que o sol ganha força. Descemos à rua e nos deparamos diante dos cadáveres. A imobilidade que nos toma impede qualquer tipo de reação. E desta forma permanecemos a observar os corvos estilhaçarem nossa própria carne.
A AUTORA

Priscila Pasko nasceu em Porto Alegre, em 1983. É jornalista e escritora. Tem um conto publicado na coletânea Novas contistas da literatura brasileira (Zouk, 2018). Como se mata uma ilha é o seu primeiro livro de contos inéditos.