
Capitolina Revista
Prisca Agustoni
Poesia

Nota da autora:
Esse é um livro de poemas que nasceram a partir da experiência (individual e universal) da migração. Migração física, migração linguística, o instinto de reconstrução que habita todos aqueles que por alguma razão saem da própria cultura (e de si) para serem habitados por outra, outras. Por isso convoco o diálogo, sempre presente, com tantos outros migrantes, como Agota Kristof, autora central à minha formação tanto intelectual quanto pessoal, escritora de nacionalidade húngara que se refugiou na Suíça, em Neuchâtel, onde se reinventou (como operária, como mãe de uma filha) e escreveu uma obra muito potente numa língua que ao chegar, em 1956, ela sequer falava e que ela definia como sendo a “língua inimiga”. Ela é uma das autoras que convidei para dialogarem comigo dentro desse livro.
Os poemas que compõem o livro existem também em italiano e estão em fase de auto tradução para o francês, essa terceira margem do rio no qual fiz morada.
cette langue qui tue ma langue maternelle:
a língua inimiga entra
pelos ouvidos e escorre
até à aorta
ali espera e rosna
um cão que sabe
o estranho à espreita
atrás da porta
nessa língua feita cão
que ladra
e rói o osso
da língua morta
a operária húngara
escreve seu caderno
como uma Penélope,
mais uma,
ela própria no exílio
tecendo
sua mortalha:
Agota Kristof
espera
a volta da língua
sacrificada,
a certeza da escrita
como única casa
rascunho eterno
numa língua torta
(Poema extraído do livro O MUNDO MUTILADO, no prelo com a editora Quelônio (São Paulo), com ilustrações da artista suíça Anna Allenbach.)

Prisca Agustoni nasceu na Suíça, em 1975. Formou-se em Letras Hispânicas e Filosofia na universidade de Genebra / Suíça, onde morou até mudar-se para o Brasil, em 2002. É docente de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora, poeta e tradutora. Escreve em italiano, francês e português, e se autotraduz nas três línguas. É autora de vários livros, entre eles Inventário de vozes (2001), Sorelle di fieno (2002), Días emigrantes (2004), A recusa (2009), A morsa (2010), Un ciel provisoire (2015), Hora zero (2016), Casa dos ossos (2017), os livros de contos A neve ilícita (2006) e Cosa resta del bianco (2014) e o livro de ensaios O Atlântico em movimento: signos da diáspora africana na poesia contemporânea de língua portuguesa (2013).