
Capitolina Revista
Natan Barreto

Raízes ósseas
Os dentes nos lembram,
quando mordem,
ou mesmo quando sorrimos,
que somos ossos
e já estamos mortos
debaixo da carne,
barro que nos cobre
de buscas e abraços.
Por mais que o sangue flua
é nua toda ilusão:
o silêncio cai no dito,
lágrimas secam nos cílios,
todo canto enfim descansa –
nossas raízes são ósseas.
Na boca, o sorriso é cerca,
sem arame, só farpas,
que nos apartam e aproximam
do porvir
(que vem).
Na maçã mordida, a morte
da carne de quem a mordeu.
Fomos plantados
em nós.
Aqui jaz o que já fomos.
Carregamos o oco
enquanto dançamos
ao sol
e vamos
inventando passos
pelas sendas do sempre.
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Ouça primeiro o silêncio
Ouça primeiro o silêncio –
a música é dele somente.
Não tenha anseio por notas
nem melodias que espelhem.
Palavras não cace: cale-se.
Deixe que o nu se desnude
e saia de dentro da ausência,
qual pétalas de rosa ao azul
(acesas sem sombra ou luz)
na concha em que tudo ecoa.
Não busque o som que em si nasce
nem prenda o que se desprende.
Ouça primeiro o silêncio –
a música é dele semente.
É dele que brota o que entra
no fora que ancora as manhãs.
Na água em que jorra o que é tempo
semeiam-se em hoje ontens.
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Meio-irmão
Meio-irmão,
metade da terra
à planta,
volta tanta
dada ao tronco
que canta
em seu corpo
o nó
do homem
que nos fez.
Passos da história,
que a tarde evapora,
do chão da carne
sua.
Inteiros dormem
os olhos,
em meio à manhã
que nos acorda,
madura de chuva
e sal,
molhada de um mim
de um pai
tão além da luz
da minha
(não nossa)
mãe.
Meu irmão,
solidão.
Tristeza a subir
de um cigarro,
nuvem que às cegas
envolve
a noite que sobe
quando as pedras
caem.
E um menino
falava o azul
de lábios
que entravam no tempo
ao sol de um momento
em nós passado
a limpo.
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O AUTOR

Natan Barreto nasceu em 1966, em Salvador. Em 1990, formou-se em Interpretação Teatral pela UniRio e passou a morar na Europa. Viveu em Paris e Roma, e está radicado em Londres desde 1992. É tradutor e intérprete formado pelo Institute of Linguists, e professor primário pela London South Bank University. É autor dos livros de poesia Sob os telhados da noite (1999); Esconderijos em papéis (2007); Movimento imóvel (2016), que recebeu uma Menção Honrosa da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro; Bichos: poesias desenhadas (2017); Um quintal e outros cantos (2018), que venceu o Prêmio Sosígenes Costa de Poesia, concedido pela Academia de Letras de Ilhéus; e O ritmo da roda: poemas fotográficos (2019). Publicou também Quase-sonhos & Traduzido da noite (2009), edição bilíngue – francês/português – de poemas de Jean-Joseph Rabearivelo, escritor de Madagascar; e a biografia Entre mangueiras: a vida de Eunice Palma (2011).