
Capitolina Revista
Marcelo Labes

POESIA
i.
Um país, disse Oswald,
se faz de homens e livros.
O pobre vivia noutro Brasil
e nem supunha que um dia
aquele mesmo país se faria
de centenas de milhares de
mortos e aqueles que os empilham
e aqueles que os enterram
(caixão lacrado, lágrimas mudas)
e aqueles que por eles choram
e aqueles que tentam escrever
livros que deem conta de explicar
onde foi que viemos parar, Oswald.
Onde foi que viemos parar.
ii.
Em 1996, quando a Mocidade Unida
de Jacarepaguá, hoje Mocidade Unida
da Cidade de Deus, desfilou pelo sambódromo
de branco, em luto, com quarenta integrantes
a menos – perdidos para as águas e pela
cegueira do Estado – somente um surdo
ecoava pela passarela. As batidas do surdo
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TUM
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TUM
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TUM
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foram mais fortes que as
curvas de Niemeyer que a
ocupação francesa naquelas
praias que o tilintar das ossadas
enterradas nos arredores do
Cais do Valongo.
iii.
Há uma estátua de Castelo
Branco em Barroso outra no
Rio de Janeiro. Há uma estátua
de Médici em Cuiabá. O busto
de Costa e Silva foi derrubado
em Taquari. Geisel e Figueiredo
não aparecem nessa lista, os filhos
da puta.
As estátuas de terracota dos guerreiros
de Xian somam aproximadamente
8 mil figuras humanas – mais carruagens
e quinquilharias.
Faltaria ferro, se fosse de ferro.
Faltaria concreto.
Faltaria bronze.
Faltaria, faltaria
se erguêssemos um monumento
para cada um de nossos mortos.
iv.
É preciso contar.
Todos os dias, é
preciso acordar
cedo e contar.
Já não há canção
alguma que dê conta,
somente o surdo de 1996
ecoando através dos anos.
O AUTOR

Marcelo Labes é poeta e prosador. É autor de, entre outros, Amor de bicho, Três porcos e Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 e 2o colocado no Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional em 2019. Enclave (Patuá, 2018) foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019 na categoria Poesia.