
Capitolina Revista
Marcelo Ariel
Poesia

Evandro Carlos Jardim
A razão de ser da linha
está em cada um de nós
A linha não existe
sem uma direção
seu destino
é sempre o objeto
o objeto é sua razão
A linha não nos engana
como a harmonia que
discernível na forma
se esconde
na construção
do desenho
que somos
existindo com
o mundo
como a eternidade
existe em um segundo.
(Do livro inédito A ÁGUA VEIO DO SOL, DISSE O BREU OU TAMBORO TEKÓ PORÃ, TAMBORO Y’Y’)
Ponge e Celan: um diálogo
para João Gilberto Noll
Ponge: São como peixes de gelo e lentamente se transformam em peixes de fogo.
Celan: Depois são água?
Ponge: Nunca são água ou quando são a água desejam ser o ar e queimam de dentro para fora.
Celan: Eu desejo ser água.

Como ser o negro ou a matéria escura
( Excertos)
Começamos no presente atemporal eu, o negro e o mundo que é uma mentira porque a própria eternidade está em nós e finge morrer em nós
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O que está atrás do pensamento é como uma vírgula nas frases do mundo podemos usar estas frases –frações do tempo como o ar usa uma carcaça, logo seremos uma cultura de carcaças dissolvida pela luz que é a única coisa
intraduzível
ela e as correntes
corrente sanguínea
corrente elétrica
ela e as correntezas
Onde o Orisà diz: os cinco sentidos
não tem sentido, nem direção
embora apontem para fora
para a imanência
a imanência é um perfume fotografado no riso da caveira
a tese do poema Ozymandias do negro Shelley
ou a tese do negro Shakespeare
só existe uma caveira formada por todas as caveiras
só existe uma rosa formada por todas as rosas
onde você tentou estar
a rosa negra
multiplicada pela matéria escura
isto deveria se chamar nascer
nascer ou se dizer
mas nascer é o começo de uma liberdade infinita
e ultrapassa a duração de uma vida
os três cérebros ofuscados por usarmos apenas um
não posso com essa linearidade dos massacres
ela, a vida fala agora , a língua da extinção
Marcelo Ariel tem quatro anos
e entra em qualquer casa
qualquer mulher é sua mãe
o mundo em sua infanceanoessencialidade
no sobrenatural: eis onde realmente começamos
a vida é essa outra vida
nenhuma palavra vai entrar
nela
nenhuma divisão
nenhuma dicotomia
nenhum dualismo
O sono da linguagem
O lugar se chama Sete anos, o asteroide se chama
O Agora e rege a aparição das polícias imanentes
A morte é o instante-já congelado, o tempo é o instante-já derretendo lentamente o Iceberg-Eternidade
as bombas de nêutrons no mar de neutrinos
mas somos
imunes ao eu aos sete anos
O pólen negro descolando da Flor do Eterno
no transe do vento para os campos do interexterno
depois desenvolvi um comportamento cênico
por desconfiança
do mundo
onde não há vida, apenas sonho ou pesadelo
estamos nele para que ele conheça a vida eterna
para fazer a vida viver
memória gravada nas coisas
desconfiança do mundo criado pelas palavras
desconfiança do mundo criado pelas máscaras
desconfiança do mundo encoberto pelas capas
Assim jamais será possível nascer ,
entre no paradoxo
do túnel fora do feminino infinito
para sentir depois a violenta saudade do feminino infinito
Myriam ou Eva são negras como Lilith
Estão dentro do Orisà, com o Arcangélico, o Querubínico, o Daimônico
Enquanto aqui fora lentamente nos transformamos em um vapor cênico
girando em torno do inalcançável
empenhados em expor
sempre para nós mesmos
uma esterilidade
facilmente adquirida
graças ao senso comum
que é nosso inimigo
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sou alguém que se descobre
infindavelmente negro ou seja
que descobre sua singularidade
seu pacto com a matéria escura
como uma matiz escura
da energia luminosa
e além desta destinação
tenho um outro acordo interno
com a invisibilidade, mas não com a nulidade
por isso este momento, este poema
a falsa imunidade poética
dito isto
COMO SER UM NEGRO
começa.
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não aprendemos a ler e escrever na escola , foi a vizinha
a negra Dona Marlene me ensinou
quando cheguei no sistema escolar
aprendi que um avanço para nós
é visto como um atraso , um acidente
por muitos, os que trabalham para o opaciamento do sublime,
no senso comum
tudo parece ser regido pela perda
do ser do tempo, do ser do espaço, do ser-do-ser
em nós há um Pássaro
que jamais canta
por isso jamais saberemos nosso verdadeiro nome
Um pássaro transparente
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aprendi a dizer sempre outra coisa
a perder por delicadeza
e isso é parte do aprendizado
sobre o Sol
chamado
NÃO
Preto é um lugar ôntico
e Negro é um lugar social
soube desde sempre
que o ôntico
e o social
nunca se encontram
no mesmo plano dimensional
soube desde sempre
que a dimensão em que me movia e respirava
era a dimensão do nunca
A canção da inexistência , canção incidental para os hinos de guerra no sangue
O Orisà me diz que a humanidade profunda habita sempre a dimensão do nunca , que no presente a Terra é desabitada e pertence aos pássaros, insetos e árvores
E o que existe é a construção de um poema supremo na manutenção de nossa presença
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o tempo exterior nunca será um poema
sussurra o anjo da História
promovendo este movimento que nunca será para a frente
como imaginávamos
mas para as origens, para o terror de antes da ausência
que neste momento que estamos vivendo agora
se confunde com o esquecimento do nome do primeiro negro a chegar aqui
para morrer
longe de seu Destino de pássaro-árvore
como nós
ou seja
longe do Infinito.
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O espírito também está abertamente fechado
SEU APRENDIZADO RESIDE NA NÃO-ACEITAÇÃO DO FACTO DE SE SENTIR ESCRAVO
Algo fora do verbo que se conjuga humano
Apenas no futuro , me diz que
a hierofania é meu único trunfo
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o olhar é como partitura para o que não sabemos tocar
mas a harmonia estava lá,em sua forma matemática
antes do nascimento,
antes da equação do choro
que recupera o animal perfeito
mas o indizível permanece
disfarçado de angústia
o tempo passando nos ossos mais lento do que na carne
Diversas teias de Ariadne se dissolvendo, desenhando antes centenas de filas , a primeira para a matrícula escolar, a segunda para as projeções, a terceira para pegar o ônibus, a última
para ser salvo pela fé em atos impossíveis do pensamento
configurações da liberdade absoluta, tão inexistentes quanto o Nada ou a metafísica em uma blitz da polícia.
Percebi que a presença do Negro incomodava no meio das casas que almejavam o embranquecimento aparente ou seja a inclusão nas classes chamadas altas, os negros que não conseguiriam mais levantar a cabeça, desejavam os passes de embranquecimento obtidos dentro das famílias brancas, mas isso não acontece por osmose , nem por nadificações, como podemos ver ao ligarmos a TV em rede ou olhando em torno, estamos dormindo há séculos nas calçadas.
A matéria escura descendo até o campo de buracos negros com RG e CPF, com sua metagenealogia provisoriamente cancelada pela aura burocrática da falsa clareira das filas para a renda mínima.
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Variedade da ausência de aura , criando novos agenciamentos
Ao pedir as contas, uso o dinheiro para comprar as obras completas de Cruz e Souza e de Jorge de Lima da Editora Aguillar
Jorge de Lima e Cruz e Souza rindo dos instantes de milagre no fundo do inferno.
Você nunca vai ser ninguém, lamenta Nietzsche olhando para o espelho em Turim em uma dimensão similar , um Nietzsche negro e outro pardo, encostam na parede, com as mãos na nuca.
Noel Rosa , o equivalente de um Rimbaud gago
Nenhum branco na cela
Nenhum negro no restaurante da Vila Madalena, onde entrei com minha namorada índia.
Tive duas namoradas índias, o amor reluzia no meio do mato
A menina Elza cantando com uma lata d' água na cabeça
como um golfinho brincando nas águas de um oceano inominável.
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eu sabia sentindo que estava refletido em tudo o que respira
como um pedaço de névoa no fundo de um rio
exatamente como aqueles presos do Doi Codi
jogados de helicóptero no mar,
assim eu caminhava pela cidade
dobro a esquina em dez mil anos de ontem e vejo centenas de carros abandonados, cobertos de folhas secas
e uma estrela do mar, que você carregava no bolso
uma que você encontrou no alto do Morro do Pica-Pau
antiquíssima ocupação desmontada pelo enigma da policia ambiental, a estrela por dentro imita o movimento de uma porta
e para fora o de uma voz de uma criança dentro de uma árvore
deliberando a expansão sem fim dos limites
de acordo com esta roupa absoluta ,
não, estou confundindo as policias metafísicas
havia a policia da coisificação do eu
a policia da imaterialidade
a polícia da imanência
e caminhar sem medo pela madrugada fora do tempo
era uma reivindicação do impossível
o dinheiro estava colado na pele
e se dissolvia bem rápido
por causa do vento
das necessidades
onde todos escreviam um cronograma do fracasso da comunhão
através da quietude lúcida do apocalipse
havia paradoxos que iluminavam
como a chama flutuante das velas nas encruzilhadas
ou alguma outra luz apenas pressentida
como a iminência do retorno dos Deuses
que sussurram no ar dos massacres
Eis que é chegada a hora do conflito
em que solicitamos que a anistia prisional deve libertar todos os presos
pretos baseada em uma equivalência de reparação
para cada 50 pretos assassinados um preto é solto
e eis que ficaram vazias as prisões
antes disso diz a pixação absoluta
As prisões são Senzalas concentradas
e as ruas ocupadas por pretos em situação de rua
são senzalas dispersas
O negro que se procura alcançar
Não é o negro histórico
O nome que se quer lhe dar
Não é o nome adequado
Sem nome, representa a origem da injustiça
com seu nome de origem é o mãe de todos os Povos
e diz a poeta na Casa do Sol
Não haverá a lúcida vigília, porque não haverá um dia
infinito, mas sim a noite sem fim, criada pelo gesto de retirar o véu branco que estava encobrindo todos os rostos e esta noite se converterá em prateada e depois em noite transparente e quando a matéria escura
puder ser vista do lugar onde antes nascia o Sol
o negro dentro do negro irá iluminar a transparência do ar
e neste ar genesíaco, extensão africanizada do não-lugar
que um dia foi a Terra,
poderão se abraçar todas as primeiras pessoas
tornadas terranas
irmãos e irmãs em alteridade
finalmente do lado interior
o que dissolve as fronteiras.
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Agora estamos vivendo em um dobra do tempo, eu todos os assassinados.
Estamos em uma espécie de Congresso Nacional de Indigenas
e ele declararam que todos os pardos
são índíos
olho para meu reflexo
no espelho do banheiro
e vemos o jaguar-orquídea
e através da matéria escura
ela nos vê.

(Do livro OU O SILÊNCIO CONTÍNUO-POESIA REUNIDA 2007-2019, Kotter Editorial)

Marcelo Ariel é poeta, crítico e ensaísta. Autor de Com o Daimon no Contrafluxo ( Patuá) , Ou o Silêncio Contínuo poesia reunida 2007-2019 (Kotter Editorial) entre outros, atuou como ator/roteirista no filme PÁSSARO TRANSPARENTE de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente coordena com Liliane Prata o ‘Laboratório de Criação Literária’ em São Paulo.