
Capitolina Revista
Marília Lopes

Este povo
Este povo estóico
suor engrandecido
raça de divindades
Esta azáfama esta cruzada
vinhos adormecidos
tonéis de crenças
erupções nos troncos
futuro
Estes ramos que as mulheres colhem
misérias encobertas
Esta prole de gente
rebentos moços
massa humana de cavadores
Vento que voltará ao vento
semente em génese
Rio que se estende em liquidez
no cansaço dos olhos
enxutos com vinho.
(in Castas, 2012)
As minhas mãos
Em concha as minhas mãos oferecem
o sabor da titânica
paisagem de ranchos
vindimadores numa estreita
dádiva
água criadora
serros montes encostas vales
terra lavrada
as brancas casarias avistam
o labutar dos membros
os rebanhos a chocalhar
ermas fora
O rio abre um sulco navegante
que se ergue em cachões difíceis
como estes braços
vergastando machos
que equilibram canastros
recalcados de uvas
onde poisam abelhas
pelo melaço.
(in Castas, 2012)

Brilho
Não sentes a tua exactidão
tropeças da vigília
Não é dormir ainda
mas olvidar tudo o que permanece
onde te inventas e brilhas
Fazes da novidade
o esforço denso
É o veludo
onde avivam o negro
rigor de estreia
O andamento
o poder de enxugar
estranha aprendizagem
o teu rosto.
(in Castas, 2012)
Elas escreviam à máquina na minha cabeça
A meio da noite, acordava com teclados
martelares contínuos. que quereis, perguntava
Não me diziam. amuavam nos seus olhos baixos
Transportavam-me na melodia mecânica dos corpos
? Seria percussão no que insistiam? porque não me
deixavam no sono?
Victorianas, queriam bicicletas, deixar desmaios
romper urbes, firmar gaivotas.
Hoje escrevo com o arquivo delas na garganta
Não me engasgo com enciclopédias de enxovais
Regurgito as formas que me trazem vagabunda na estrada
no romper de caminhos
Imberbe de pranto, ensurdeço. que mudas vós gritais
Que sempre fechados genitais
ao corpo deles, inquietos
Brame a flâmula. sou de vidro ainda cedo. as tardes
são cálidas nuvens chovendo cíclicas inspirações
Transpiro. vindes calar-me, agora sei: calar com o som
determinado a auscultar
o meu próprio batimento
Tremulamente me levanto da cama
onde pousam combinações de outrora
Rendadas me trazeis nas mãos. sinto-as na boca fechada
O meu silêncio é a vossa chama. um não dizer que bateis
sobre a secretária antiga.
(in Victorianas, 2015)
Não há lucidez
Não há lucidez
nem no percurso das vítimas, nem no fel dos
carrascos
É essa a realidade carregada: a compreensão
suicida-se
Quando as frases correm telegráficas
ou tolhidas pelo receio de tropeçarem da boca
Não é fácil amar
NÃO É FÁCIL AMAR
Não é fácil amar
depois dos braços torcidos, das olheiras fundas
ou do marejar de lágrimas
de quem vê viscosos vultos
a derramarem calúnias. não é fácil
que o temor se despenhe na lama
e disperse todas as bondades, mesmo aquelas
que ainda arredam as cortinas das casas
com toda a delicadeza
Na grande ironia do sorriso de esguelha
antes de baterem contra a janela
os corvos saem.
(in Victorianas, Editora Labirinto de Letras, 2015)

Nas vossas amesquinhadas vidas, senhoritas
Nas vossas amesquinhadas vidas, senhoritas
de penteados demorados, de espelhos tísicos, Virginia Wolf
espeta um garfo
Junto à janela que nunca se abre
nem de manhã para arejar o bafio
os vossos sovacos transpiram
o relâmpago da lágrima
vertida dos vossos olhos
fitos no Sol que perturba
Fazei com que nasça um Monet no espartilho das ligas
no fundo romântico dos pratos que rapais
discretamente, com a colher
Ele está mesmo à vossa frente e não imagina
que o procurais na sopa
como quem arranca
pétalas de malmequer
com a boca.
(in Victorianas, 2015)

Marília Miranda Lopes nasceu no Porto, em 1969, é sócia da Sociedade Portuguesa de Autores e do P.E.N Clube Português. Foi bolseira dos Serviços de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. É autora de “Poesis em Oásis” (Poesia,1990) “Framboesas” (Teatro para a infância, 1996), Geometria (Poesia, 1998); “Templo” (Poesia, colecção Tellus, nº10; 2003); “Duendouro – Era uma vez um rio…” (Teatro - Edições Afrontamento – livro incluído no Plano nacional de Leitura e levado à cena na região Norte - 2007), “Castas” (Poesia, edições Cadernos Q de Vien de A Porta Verde do Sétimo Andar – Galiza, Espanha, 2012), “Victorianas” (Poesia, 1ª edição - Edições Labirinto de Letras, 2015) e “Castas” – 2ª edição bilingue - português e castelhano – (Ianua Editora, 2019). Tem textos publicados em antologias e revistas literárias (Portugal, Espanha, África e Brasil).