
Capitolina Revista
Gustavo Pacheco

DIVINO PAU
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
1. Tenho a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência o anexo projeto de lei que dispõe sobre a mudança de denominação da República Federativa do Brasil.
2. A referida mudança é reclamada de longa data por milhões de cidadãos tementes a Deus. O que se reclama é o uso de uma denominação mais adequada às novas condições materiais e espirituais em que a nação se encontra, graças a Vossa Excelência.
3. Como se sabe, a República Federativa do Brasil deriva seu nome da espécie vegetal pau-brasil (Paubrasilia echinata), também conhecida como ibirapitanga, arabutã e pau-de-tinta. Caracteriza-se o referido lenho pela abundância do pigmento brasilina, de cor alaranjada, que, em contato com o ar, transforma-se no pigmento brasileína, de cor vermelha, usado para tingir panos e vestimentas.
4. Escusado dizer que a atual denominação do país não foi a única, nem a primeira, a ser utilizada ao longo de sua história, como prova a expressão Terra de Vera Cruz ou Ilha de Vera Cruz usada na Carta de Pero Vaz Caminha. Posteriormente, adotou-se a designação Terra de Santa Cruz, vigente até meados do séc. XVI. Assim, não se pode dizer que o nome Brasil tenha foros de precedência histórica sobre os demais.
5. Tampouco se pode dizer que a atual denominação tenha sido adotada de forma unânime e incontroversa. Muitos foram os que se opuseram à mudança de uma designação baseada no sagrado madeiro para outra, derivada do lenho tintorial. Dentre eles, destaca-se o ínclito historiador João de Barros, que em 1552 criticava a preferência pelo “nome de um pau que tinge panos" em detrimento "daquele pau, que deu tintura a todos os Sacramentos por que fomos salvos”.
6. No mesmo sentido asseverava o insigne cronista Pero Magalhães de Gândavo, em sua História da Província de Santa Cruz, de 1576: “Na verdade mais é de estimar e melhor soa nos ouvidos de gente cristã o
nome de um em que se obrou o mistério de nossa redenção, que o doutro que não serve de mais que de tingir panos ou cousas semelhantes."
7. Na mesma direção, ainda, afiançava o egrégio prelado Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil, de 1627: "O dia em que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos; porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, e receando perder também o domínio que tinha sobre os desta terra, trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de cor abrasada e vermelha, com que tingem panos, que o daquele divino pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja."
8. Numerosos documentos semelhantes poderiam ser compulsados; contudo, os acima elencados são suficientes para evidenciar que a adoção do nome Brasil jamais se revestiu da aceitação universal que constitui pré-requisito necessário e iniludível para ato de tamanha relevância e magnitude para os destinos pátrios.
9. Acrescente-se ao exposto o fato de que a tonalidade vermelha associada ao pau-brasil constitui elemento nocivo e inoportuno aos interesses do país, na medida em que atrela a identidade pátria a uma coloração que remete a ideologias nefastas e anacrônicas.
10. Ressalte-se, ainda, que o nome Brasil se mostra obsoleto após a remoção do último espécime conhecido de pau-brasil em território nacional, no mês de fevereiro último, durante a reestruturação empreendida na reserva biológica do rio Buranhém, no município de Porto Seguro, com vistas a transformá-la no parque temático Terra de Santa Cruz, iniciativa piloto do Plano Nacional de Turismo Cívico-Religioso instituído por Vossa Excelência.
11. À luz dos argumentos aqui arrolados, ficam patentes a oportunidade e a conveniência de se substituir o nome atualmente empregado por outro, mais condigno e consentâneo com as origens cristãs da nação e com sua realidade atual. É nesse sentido que o presente projeto de lei determina a adoção imediata da nova denominação República Federativa de Santa Cruz, assim como a substituição do gentílico pátrio, que passará a ser santa-cruzano. Esclareço que o gentílico santa-cruzense não foi adotado
a pedido da bancada pernambucana, para evitar confusão com a tradicional alcunha dos torcedores do Santa Cruz F. C.
12. Cumpre informar, por fim, que a mudança do nome da capital federal com o intuito de adequá-la ao presente projeto de lei e, ao mesmo tempo, homenagear Vossa Excelência, será objeto de projeto de lei à parte.
13. São essas, Senhor Presidente, as razões que fundamentam o projeto de lei que ora submeto à elevada consideração de Vossa Excelência.
Respeitosamente,
Florêncio da Silva
Ministro Chefe da Casa Civil
O AUTOR

Gustavo Pacheco nasceu no Rio de Janeiro em 1972. Traduziu para o português obras de Roberto Arlt, César Vallejo, Julio Ramón Ribeyro e Patricio Pron. É codiretor da revista Granta em língua portuguesa. Seu primeiro livro de contos, Alguns humanos (Tinta-da-China, 2018), ganhou o prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional.