
Capitolina Revista
Dirce Waltrick do Amarante

BICHOS DA INFÂNCIA
O URSO
No final dos anos 1970, meus pais foram a Buenos Aires e me trouxeram um ursinho de pelúcia preto.
Fiquei sabendo que a minha mãe havia cortado a língua dele, porque a achara longa demais.
Soube também que uma de suas patinhas de couro havia sido queimada por um cigarro durante a viagem. A marca estava ali.
Algo me incomodava naquele ursinho de pelúcia, talvez eu visse nele as marcas de tortura de sua história.

A FORMIGA
Perto da casa de praia da minha avó, veraneavam duas garotas: a Karen e a Guiga. Eram irmãs. Elas apareciam lá sem avisar e queriam brincar comigo.
Eu não detestava as meninas, mas a companhia de quem quer que fosse e me escondia. Minha avó e minha mãe achavam muito feio o meu comportamento.
Eu também achava, mas o que podia fazer? Preservava a minha solidão.
Nessa época, eu tinha uma formiga de estimação, a Margarida. Ela tinha pintas vermelhas no traseiro e era relativamente grande para uma formiga.
A Margarida passeava pelo quarto. Eu a alimentava com folhas e água. À noite, ela dormia em uma caixinha de fósforos, que eu fechava.
A Margarida parecia feliz.
Mas, um dia, ela foi embora e nunca mais a vi.

OS CARNEIROS
Nos dias em que eu estava doente e ficava em casa, vestia um penhoar azul com carneirinhos brancos pulando cercas e com “boa-noite” escrito em várias línguas. Algumas línguas eu podia adivinhar: Good night, Buona notte, Buenas noches, Guten Nacht (eu achava bem estranho, mas sabia que era alemão, minha avó havia me dito que era alemão); outras línguas eu nem imaginava quais fossem, uma parecia japonês.
Esses dias de enfermidade eu os passava desenhando, vendo televisão, ouvindo disquinhos de vinil que contavam histórias como a de uma baleia cantora (ela cantava ópera, e eu queria muito ser como ela) e olhando os carneirinhos do meu penhoar, que pulavam cercas e iam de uma língua para outra com muita facilidade. Eu repetia os “boas- noites” nas línguas que eu conseguia pronunciar e pensava nos países onde elas eram faladas, nas pessoas que falavam aquelas línguas. Queria ser um carneiro.
A AUTORA

Dirce Waltrick do Amarante é ensaísta, tradutora e escritora. Autora dos livros de contos Ascensão: contos dramáticos (Cultura e Barbárie, 2016) e Cem encontros ilustrados (Iluminuras, 2020).