
Capitolina Revista
Délcio Teobaldo
MATER
maria atravessa o asfalto fora da faixa a fome cobra o vacilo cai de bruços e lá se vão os dois últimos dentes sangue ralo insuficiente pra tingir de vermelho a poça d’água onde a cara preta ossuda jaz escalavrada estica a mão num movimento epilético que se convertido em dor seria um grito ganido tosco rouco escroto mas todos passam por ela batidos arrasta-se e às suas misérias que a cidade estripa mastiga engole vomita o filho trapo entre trapos fiapo de gente no osso
geme
de frio
treme
Dia de merda a guarda municipal fez o rapa os dois moleques filhos dumas arrombadas que alugou pra vender mariolas sumiram com o bagulho e a grana hoje não volta pra casa cospe sangra o beiço baba ao lado o filho arde sentada como está vê quem vai e vem dos pés às bundas
bundas
bundas
bundas
bundas
bundas
bundas
vagarosas
apressadas
vazias
lotadas
soltas
apertadas
tensas
relaxadas
públicas
privadas
insuspeitas
grampeadas
autônomas
empregadas
civis
comandadas
ativas
aposentadas
bundas
bundas
bundas
bundas
bundas
vadias
agendadas
profanas
sagradas
caretas
drogadas
caídas
arrebitadas
pudicas
arreganhadas
falantes
caladas
vestidas
peladas
sérias
requebradas
naturais
siliconadas
cults
despirocadas
cheirosas
peidadas
gentis
mal educadas
pisam nas poças d'água e respingam sujeira na cara feia pobre preta desdentada

Do outro lado da rua um carro de reportagem luzes poses olhos na câmera falam da chuva que não para e pode atrapalhar o feriado prolongado
Pessoas sorriem Todas reclamam
“Um fenômeno conhecido como zona de convergência conjuntural ecoestática está empurrando nuvens carregadas do Sul em direção ao Sudeste. É um fenômeno raro e incomum nesta época do ano, mas segundo os especialistas, o mau tempo não vai atrapalhar a rotina do feriadão. O serviço de meteorologia avisa que amanhã o Sol reaparece em todas as regiões, depois de chuvas esparsas pela manhã. Para quem pretende deixar a cidade, a melhor opção de lazer continua sendo...”
Calada
Maria olha
Ouve
Engole saliva
soluça
chora
O filho geme
A repórter
As luzes
As bundas
geme...

Maria fecha os olhos imagina em torno dela toda aquela multidão
luz
calor
atenção
a cara preta inchada desdentada na televisão
Pra gozar tudo isso
“A hora é agora!
A felicidade existe!
Está aí ao seu lado!”
Pega a pedra
e bate que bate rebate
a cabecinha doente
do filhinho desgraçado
(Poema inédito do livro “Bestiarium”)

O AUTOR
Escritor, jornalista, etnomúsico, documentarista, Délcio Teobaldo é autor de “Pivetim”, romance vencedor do Prêmio Barco a Vapor, 2008 e APCA 2009. Atualmente trabalha o segundo álbum autoral Moura‘Yndio, pré lançado em Londres, em dezembro de 2019.