Capitolina Revista
Carla Bessa resenha "Desamores da portuguesa"
Contando-se em terceira pessoa

O romance “Desamores da portuguesa” propõe uma troca de perspectiva para ver-se através do olhar do outro
Desamores da portuguesa
De Marta Barbosa Stephens
Imã Editorial
112 páginas
Por: Carla Bessa | Berlim
“Aprendendo com Brecht a pensar em mim mesmo na terceira pessoa do singular, percebi que o desenraizamento não é uma maldição, mas sim parte da condição humana.”
Esta frase é de Andrzej Wirth, um renomado crítico de teatro polonês que passou as duas últimas décadas de sua vida na Alemanha, e a quem tive o prazer de conhecer pessoalmente. Para Andrzej, que viveu em vários países e falava diversas línguas, o “ser estrangeiro” representava não só uma possibilidade de libertação de padrões preestabelecidos pela cultura natal, mas também a condição indispensável para que o ser humano, espelhando-se no outro, conheça a si mesmo. O grande achado desta frase é que ela condensa a complexa experiência da alteridade na fórmula: o deslocamento torna possível a troca de perspectiva e é essa inversão que permite ao sujeito ver-se através do olhar do outro.
No entanto, e isso Andrzej também acrescenta, por motivos diversos, nem todos são capazes dessa transposição e alguns ficam emperrados a meio caminho entre os pontos de vista, vivendo numa trágica suspensão entre o de
fora e o de dentro ou entre a biografia que abandonaram e a nova história de vida que não chegam a, de fato, traçar.
É o que acontece com a protagonista do primeiro romance de Marta Barbosa Stephens: a portuguesa parece ter ficado presa nessa permanente intermitência. Insurreta o suficiente para não aceitar continuar em relações fracassadas, mas incapaz de reinventar-se a cada novo esboço de vida, ela subsiste numa constante diáspora emocional. Esta mulher sempre cansada e com profundas olheiras erra entre novos (des)amores e tentativas de formar família na esperança de encontrar neles o tão desejado pertencimento. Porém, as novas ligações afetivas a arrastam para países e realidades diferentes que a sobrecarregam e às quais ela não se adapta, vendo-se cada vez mais expatriada de si mesma.
O romance, dividido em três partes equivalentes aos três maridos da portuguesa, é narrado em terceira pessoa por sua interlocutora, uma brasileira que a conheceu por acaso na porta da escola onde as filhas de ambas estudam, em Londres. As protagonistas não têm nome, o que já é um aceno para o caráter arquetípico das figuras, indicando que o individual no texto funciona como uma alegoria para um estado maior de desenraizamento.
As duas mulheres passam a se encontrar com frequência e, enquanto a portuguesa relata das estações de sua vida até ali, a narradora brasileira torna-se uma mistura de ouvinte, eco e espelho. Essas conversas têm um efeito apaziguador para ambas: enquanto a portuguesa vê ali uma possibilidade de arrumar sua pesada bagagem emocional, a outra utiliza o diálogo como instrumento de medição dos caminhos traçados por ela própria.
A primeira parte relata o casamento da portuguesa com Estevão, um brasileiro que ela conheceu em sua terra natal e de quem em breve engravidou. A pequena família muda-se para o Brasil onde, de início, ela tem uma vida confortável, vivendo na casa dos sogros num bairro privilegiado de São Paulo. Porém, depois da experiência traumatizante de um assalto na porta de casa, no qual a filha bebê do casal quase é levada junto com o carro, a portuguesa entra num contínuo estado de pânico e ódio ao Brasil, o casamento se deteriora e ela resolve voltar para Portugal.
A segunda parte, intitulada Laerte, conta do segundo desamor. A portuguesa o conhece em Lisboa e, também dele, em breve engravida. O convívio a princípio parece demarcar o tão almejado porto seguro, levando-a até a descobrir um inesperado lado criativo e realização pessoal na pintura artística. Mas é exatamente aí que tudo começa a desmoronar, pois Laerte não entende a importância daquele pequeno achado e o relacionamento rapidamente transforma-se no oposto do que havia sido no começo. E, mais uma vez, a portuguesa se vê sozinha e despedaçada.
O terceiro casamento é com Martinho, um português que ela vem a conhecer durante o trabalho voluntário numa igreja, ainda em Lisboa. Apesar de ele ser muito mais velho, ou talvez por isso mesmo, a relação se solidifica de maneira firme e tranquila. Até que Martinho tem um infarte seguido de derrame, o que o deixa preso à cama e necessitado de ajuda por muitos meses. De início, a portuguesa tenta manter-se leal e assume todos os cuidados com o marido. Porém, em breve é tomada pelo medo diante da enorme responsabilidade e das limitações de uma vida enquanto esposa de um acamado. Assim que Martinho se recupera a ponto de poder comer e ir ao banheiro sozinho, ela o abandona sob o pretexto de ir trabalhar com o pai em Londres, mas não se livra da culpa.
Quando o livro começa, ela já está há três anos na capital da Inglaterra sem ter ali se integrado. Não aprendeu a língua, não tem amigos e vive para a educação das filhas, desenvolvendo uma estranha doença para a qual os médicos não encontram remédio. Ou seja, é uma mulher completamente desconectada de tudo e de todos, e sobretudo, de si mesma.
No meio da história, há uma passagem que esclarece um pouco dessa incapacidade de adaptação da portuguesa. É quando ela revê Helena, uma ex-amiga também de Portugal, no trem. Elas haviam se conhecido ainda na adolescência e tinham tido uma amizade intensa. Mantiveram contato por muito tempo, mesmo após seguirem por países diferentes, e a portuguesa parecia projetar na outra tudo o que desejava de uma relação tão íntima. Assim, ela fica bastante decepcionada quando a amiga não vem ao seu auxílio num momento em que mais precisava de ajuda. Mas a verdade é que a portuguesa se desencanta porque havia criado uma imagem que não condizia com a realidade, é ela quem não vê de fato a outra nem aceita verdadeiramente um embate com a alteridade porque esteve desde sempre enfurnada no isolamento das próprias expectativas.
No final do romance, há um encontro inesperado com uma terceira mulher que dá uma virada na história e, no plano formal, deixa a narrativa descambar um pouco para o realismo fantástico. E ao fechar o livro, o leitor fica com a impressão de que as trajetórias das duas protagonistas são apenas dois lados de um mesmo movimento de deslocamento, sendo o duplo o território onde se sincretizam as diferenças e a portuguesa nada mais do que a narradora contando-se em terceira pessoa.
A AUTORA

Marta Barbosa Stephens é formada em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, além de ter pós-graduação em Edição de Livros, da Universidade de Barcelona, e mestrado em Crítica Literária, da PUC – São Paulo.