
Capitolina Revista
Ana Martins Marques
Poesia

Ofélia aprende a nadar
Há muita coisa em comum entre
cair de amor
e cair na loucura
e cair num rio
em todo caso
cai-se
da própria altura
veja-se, por exemplo,
Ofélia
cai
mas cai
cantando
trazendo nas mãos ainda a grinalda
de rainúnculos, urtigas, malmequeres
e dessas flores a que os pastores dão um nome bem grosseiro
mas que as moças denominam poeticamente
"dedo-da-morte"
cercada desses ornatos
como de uma coroa
por um momento
seus vestidos se abrem
e ela se sustenta
na superfície
envolvida
na correnteza
qual uma sereia
cantando
canções antigas
com os cabelos entrelaçados aos juncos
e às vitórias-régias
como se tivesse nascido ali
como se fosse criatura
daquele elemento
ou como uma pequena ilha
coberta de flores
que se desgarrasse do continente
(somos nós mesmos piscinas
lagos ou charcos
reservatórios onde águas
se debatem)
quando seus vestidos
se tornam pesados
ela começa lentamente
a mover os braços
e as pernas
primeiro sem deixar de cantar
depois substituindo o canto
por uma respiração ritmada
mergulhando e levantando a cabeça
e aproveitando-se da correnteza
até chegar à margem
lamacenta
por onde sobe
com alguma dificuldade
carregando o vestido
pesado
há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora

Ana Martins Marques
nasceu em 1977, em Belo Horizonte. Graduada em letras, tem doutorado em literatura comparada pela UFMG. É autora de Da arte das armadilhas (Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e O livro das semelhanças (2015).